Thursday, July 23, 2009

Exercício N.º 4

O Conflito – Exercício de reescrita

Era um líder. Era um líder para os homens.
Mas era apenas um homem.
E, naquele momento, tudo lhe pareceu demasiado absurdo. Sentiu-se subitamente pesado. A farda, outrora nova e resplandecente com as insígnias douradas, era agora um conjunto de trapos, velhos e sujos, salpicados de sangue.
E inalou profundamente.
O cheiro a corpos carbonizados e a sangue era familiar. Mas tal não significava que já se habituara àquele cheiro decrépito da decadência humana.
Ouviu passos hesitantes. Nem se importou em erguer a sua cabeça. Toda aquela rotina hierárquica era demasiado extenuante naquele momento.
- Meu comandante.
- Diz rapaz.
- Aguardamos ordens.
- Ordens? – perguntou numa voz quase apagada longe daquela voz profunda e corajosa que utilizara aquando no início da batalha.
Ordens. Batalha.
Riu-se.
Não. Não havia sido uma batalha, mas sim uma carnificina.
Escolheu uma pedra e sentou-se. Encostou delicadamente a sua arma à pedra e retirou o capacete.
- Meu comandante? – perguntou o rapaz, visivelmente confuso.
A sua face pintada de vermelho ergueu-se e contemplou o rapaz, como se fosse a primeira vez.
- Rapaz, não acabaste de ganhar uma guerra?
- Sim.
- E então? O que faz um homem após ganhar uma guerra?
As suas perguntas não faziam sentido ao rapaz. Colocara-o numa posição desconfortável.
- Então rapaz, responde. O que faz um homem após ganhar uma guerra?
- F…Festeja.
- Ah bom! Assim já nos entendemos. E porque esperas?
- Meu comandante?
- Vai. Junta-te aos teus companheiros e espera lá por mim.
Sentiu sair alguma da tensão do corpo franzino do rapaz.
- E o senhor?
- E eu? Boa pergunta. O que faço eu após ganhar uma guerra? – E suspendeu o seu discurso.
O rapaz esperou pela resposta. Ficara inquieto com toda a conversa. Este não era o homem gigantesco e poderoso que vira horas antes. Quem estava à sua frente era um outro homem, que lhe era totalmente desconhecido. Após longos segundos, interpretou o silêncio como uma dispensa e foi-se embora.
O homem, sentado na pedra, que não era mais do que um destroço de um dos prédios que havia ruído, olhou em redor.
O cenário era apocalíptico. Estava no centro daquilo que fora até algumas horas atrás, uma próspera cidade. Uma densa floresta de edifícios circundava-o. Violentas chamas irrompiam das enormes janelas. Enormes crateras polvilhavam o chão. Ao longe, à sombra do enorme sol vermelho, empilhavam corpos. Caos e destruição.
Inimigos. Tiveram o que mereceram.
Levantou as mãos até ao seu olhar. Retirou as luvas. Pareciam escaldar.
E observou as suas mãos.
O que fizera com as suas mãos? O que fizera de si próprio? Em quem se tornara?
Se o rapaz tivesse esperado um pouco mais, poderia ter-lhe dito o que é que ele fazia após ganhar uma guerra.
Pensava. Reflectia. Pois era só nesse momento que permitia que fosse contaminado pelo que emanava da sua consciência. Era só naquele momento que deixava entrar um turbilhão de emoções e pensamentos que lhe eram estranhos. Era só naquele momento que reconhecia os seus pecados, perante os seus fantasmas, perante a sua consciência.
És um homem e dos bons se o quiseres ser. – dissera a sua consciência, com longos cabelos negros e maravilhosas formas de mulher. – Mas a morte perturba-te. Irrita-te. Cega-te.
- Não tenho medo da morte. – respondera-lhe, nesse mesmo dia. Já sabia que iria partir para a guerra. – Nem tenho receio em matar. – acrescentou, com fria convicção. - Para descobrir o que é a morte, preciso matar.
Recordou as palavras da sua consciência, na forma daquela menina-mulher que deixava há tantos anos. Só nestes momentos permitia-se recordar.
- És um líder de homens mas também és o seu assassino. Leva-los até à sua destruição. Como consegues viver com isso? Conheces as mil caras da morte mas já conseguiste encontrar aquilo que procuras?
Um silêncio atroz invadiu os seus sentidos.
Inquieto, levantou-se num ápice. O coração pela primeira vez, após décadas, bateu mais forte. Começou a caminhar. Não. A caminhar não. Antes a vaguear pelas ruas destroçadas, por entre prédios desventrados, por entre carros dilacerados. Os enormes incêndios já haviam consumido tanto.
Subitamente susteve a respiração. Uma pequena casa capturou o seu interesse, e sem dar conta, entrou. O negro e o cheiro intenso invadiu-o.
Parou à entrada de uma pequena sala. Pouco conseguiu definir no seu interior, a não ser duas negras sombras, sentadas, naquilo que parecia ter sido um sofá. Os seus corpos estavam irreconhecíveis mas as suas mãos estavam unidas.
E assim ficaram para a eternidade, num momento imortalizado pela devastação.
O que é a morte?
E ali, ao ver dois resultados das suas próprias acções, teve enfim a sua resposta.
O que é a morte?
Um sono.
Um fogo, ao se alimentar apenas do sono da vida, tem de deixar para trás apenas o sono da morte.
O que é a morte?
Um sono eterno. Um silêncio devastador.

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